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Texto Curatorial

por publicado: 03/12/2019 09h56 última modificação: 03/12/2019 09h56

Revoares: uma escola de asas

 

“se não existe a sorte, tudo é um milagre” 

Alejandro Jodorowski



Em 1997, em uma aula de filologia românica na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, um professor revelou a um grupo de ingressantes na academia o tema da leitura do futuro como invenção política de interpretação e imaginação social. Ele nos contou que no século XIV aC., sábios e anciãos na Ilha grega de Eubea olhavam para o céu para ler e interpretar contextos e desdobramentos: criar hipóteses para o futuro. Para isso, os auspices e augures observavam a maneira como os pássaros voavam, cantavam, comiam, e a partir do que se dava como imagem ou como sequência de atos, interpretavam situações específicas como guerras, criação de novas cidades, troca de governantes e outros assuntos importantes para as comunidades.

A exposição Revoares, do artista e áuspice contemporâneo Edson Macalini, resulta de um trabalho de coleta de narrativas em caminhos realizados em estradas, igarapés, lagoas e rios da grande floresta amazônica, condensando na forma de pássaros seu contato e vivências com os encantados que habitam a vida de ribeirinhos, caboclos e professoras da Ilha de Parintins, no Amazonas. Os trinta e três desenhos da série Rê-voada foram realizados pelo artista ao longo de seus deslocamentos pelos caminhos de terras e de águas onde tomou contato com fragmentos e narrativas de suas existências. O desenho de imaginação de Macalini reúne traços de observação de partes bicos, penas, garras, olhos a uma abordagem gráfica que dá origem a texturas realizadas com intrincadas linhas que sugerem plumagens complexas.

Bandos de cada espécie catalogada pelo artista se reúnem na instalação Passarada, com 3300 aves que ocupam grande parte do espaço expositivo, nos lembrando da importância da diversidade, da integração entre diferentes, da busca pelo consenso e do respeito aos espaços em dissenso ao vislumbrarmos a multiplicidade de semelhanças e diferenças. 

As lições de diversidade se acentuam, entretanto, no livro de artista Warenoi, que na língua da etnia Satéré Mawé significa ‘nós ensinamos a você’. As narrativas dos verbetes de Edson Macalini nos fazem lembrar dos escritores Jorge Luis Borges e Margarita Guerrero que escreveram, em um exercício de amor,  O livros dos seres imaginários (1957), num sobrevôo sobre a literatura universal que deu origem a um  manual de zoologia fantástica. Os encantados encarnados nas penas das aves do artista Edson Macalini, entretanto, foram vislumbrados a partir dos saberes de mulheres, homens e crianças da terra, pela tradição oral, a conversa miúda e despretensiosa. As criaturas já existiam nas florestas interiores de cada pessoa e aproveitaram toda e qualquer oportunidade de contato para serem lidas pelo artista. Os percursos de Macalini - ele mesmo ave-migratória - o levaram a vislumbrar encantados que encarnaram em seus desenhos e textos como fragmentos de histórias. 

Suas aves são, como nós, mestres e aprendizes. Fundam e tomam parte em bandos que se misturam. Cantam como torneiras enferrujadas como as Anapinhas Desviadas, se mexem como dançarinas de cabaré, como as Aruanãs do Andirá, passam vidas inteiras sem descer das copas das Castanheiras e Sumaúmas como os Zutús Rengos. Suas lições nos ensinam a viver só ou acompanhado, esticado ou encolhido, comendo muito ou pouco, voando ou com pés no chão, cantando, gritando, em silêncio, lutando, rápido ou devagar, com mais ou menos penas, em rede, numa corrente de vida-morte-vida ininterrupta…

Em Revoares, de Edson Macalini a arte é uma escola com asas onde tudo ensina, tudo ‘passarão’ e tudo ‘passarinho’, como previu Manoel de Barros para eles e para nós: todos, juntos. 




Valquíria Prates (1977, vive em Piracicaba e São Paulo) é curadora, escritora e educadora. Doutora em Artes pelo Instituto de Artes da Unesp, seu interesse pela mediação em artes .